A RATAZANA E O ROUXINOL
Era uma vez, num lendário país, uma ratazana que se ufanava de percorrer longos trechos de seu malcheiroso esgoto sem perder a pelagem arrepiada e a suposta elegância no andar por esses caminhos ...
Certo dia, enquanto rascunhava um manifesto que pretendia lançar a
público, com a pena enfiada no focinho, ia dizendo por entre dentes:
-- Aqueles que como eu possuem uma tradição a zelar, herança de meus
ancestrais ...
-- E o que faziam seus ancestrais?, perguntou um rouxinol de cima de uma
roseira cujos ramos pendiam para o jardim.
-- Oh, disse a Ratazana, meus
ancestrais possuíam castelos e eram poderosos e temidos senhores feudais ...
-- E como viviam as pessoas nesse tempo? -- quis saber o curioso pássaro.
-- Ah, as pessoas nesse tempo
viviam no combate a seus inimigos e obedeciam em suas relações ao mais rigoroso
sistema protocolar ...
-- Em que consistia esse protocolo?
-- Oh ... por exemplo ... não se misturavam com seus adversários, não
mantinham relações de amizade com criaturas de baixo nível nem se permitiam
ouvir pássaros que não estivessem engaiolados, ou poetas e menestreis que não
fossem especialmente contratados para audições privadas...
-- Quer dizer que não cultivavam a arte e a vida ao ar livre?
-- Oh, não ... A não ser o nobre
esporte da caça, quando anoitecia mandavam recolher as pontes de seus castelos
e, enquanto os guardas vigiavam nas torres, participavam da ceia em família, à
luz de velas, dispostas em finíssimos candelabros de ouro, ouviam a leitura dos
clássicos para fazer a digestão e depois se recolhiam aos seus luxuosos
aposentos ...
-- Sem tomar
banho?
A ratazana não se deu ao trabalho de responder a
essa pergunta.
-- Então não apreciavam uma poesia ao luar nem
ouviam as canções matinais? – insistiu o Rouxinol.
-- Oh, não!
Era um dever da alta nobreza manter seus hábitos inalterados, sem
deixar-se contaminar pela vida mundana e promíscua daqueles pobretões das
aldeias que circundavam o castelo.
-- E como pretende você, minha querida ratazana, manter essas tradições e idéias
ultrapassadas nos dias de hoje em que diferentes categorias econômicas costumam
sentar à mesa por uma indispensável conveniência de cortesia ou estratégia
política e sejam as pessoas distintas obrigadas a tratar no dia-a-dia com as
chamadas classes inferiores?
-- Oh, isso é uma afronta à preservação dos costumes da nobreza que não
me cansarei nunca de denunciar. Estamos
a passos largos caminhando para o caos, já não existe a privacidade dos
castelos nem a pureza imaculada das classes ...
O mundo está entregue a legisladores plebeus, eleitos por seus iguais,
que defendem – que ousadia! – os direitos humanos e a partilha das riquezas,
dos sagrados bens de família com pés rapados que já nasceram pobres e nunca
tiveram acesso à educação e jamais ouviram falar em “direitos herdados”
transmitidos milenarmente de pais a filhos ...
-- E você não acha, minha erudita ratazana, com todo o respeito às suas
herdadas convicções de posse e propriedade, que cada um deveria conquistar o
seu espaço e bens pelo sacrifício da própria luta e do seu trabalho, sem nada
receber de mão beijada?
-- Ora, quem está falando?! Um
rouxinol vagabundo que nada possui e que está trepado num galho de minha
roseira sem pagar aluguel ... Chô!
-- Engana-se, minha nobre roedora de ilusões, esta roseira pertence a si
mesma. Quanto a mim, usufruo dos bens da
natureza, desfruto da liberdade de voar e entoar minha canção e sou irmanado
com todos os seres. Eu amo você, apesar
do mau cheiro, sem nenhum preconceito de espécie, raça ou família, cultivo a
humildade de observar, ouvir e aprender com os outros e não me sinto inferior
ou superior a ninguém. Sou o que sou, um
rouxinol. E porque nada possuo, não
tenho inimigos ou receios de algo perder; não dito normas de conduta nem
preciso me prevenir ou guardar rancores, mas simplesmente voar, amar e cantar.
Luciano Machado
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