domingo, 13 de julho de 2014

 


                                                             

A RATAZANA E O ROUXINOL


Era uma vez, num lendário país, uma ratazana que se ufanava de percorrer longos trechos de seu malcheiroso esgoto sem perder a pelagem arrepiada e a suposta elegância no andar por esses caminhos ...

Certo dia, enquanto rascunhava um manifesto que pretendia lançar a público, com a pena enfiada no focinho, ia dizendo por entre dentes:

-- Aqueles que como eu possuem uma tradição a zelar, herança de meus ancestrais ...

-- E o que faziam seus ancestrais?, perguntou um rouxinol de cima de uma roseira cujos ramos pendiam para o jardim.

--  Oh, disse a Ratazana, meus ancestrais possuíam castelos e eram poderosos e temidos senhores feudais ...

-- E como viviam as pessoas nesse tempo? --  quis saber o curioso pássaro.

--  Ah, as pessoas nesse tempo viviam no combate a seus inimigos e obedeciam em suas relações ao mais rigoroso sistema protocolar ...

-- Em que consistia esse protocolo?

-- Oh ... por exemplo ... não se misturavam com seus adversários, não mantinham relações de amizade com criaturas de baixo nível nem se permitiam ouvir pássaros que não estivessem engaiolados, ou poetas e menestreis que não fossem especialmente contratados para audições privadas...

-- Quer dizer que não cultivavam a arte e a vida ao ar livre?

-- Oh, não ...  A não ser o nobre esporte da caça, quando anoitecia mandavam recolher as pontes de seus castelos e, enquanto os guardas vigiavam nas torres, participavam da ceia em família, à luz de velas, dispostas em finíssimos candelabros de ouro, ouviam a leitura dos clássicos para fazer a digestão e depois se recolhiam aos seus luxuosos aposentos ...

-- Sem tomar banho?


A ratazana não se deu ao trabalho de responder a essa pergunta.

-- Então não apreciavam uma poesia ao luar nem ouviam as canções matinais? – insistiu o Rouxinol.

-- Oh, não!  Era um dever da alta nobreza manter seus hábitos inalterados, sem deixar-se contaminar pela vida mundana e promíscua daqueles pobretões das aldeias que circundavam o castelo.

-- E como pretende você, minha querida  ratazana, manter essas tradições e idéias ultrapassadas nos dias de hoje em que diferentes categorias econômicas costumam sentar à mesa por uma indispensável conveniência de cortesia ou estratégia política e sejam as pessoas distintas obrigadas a tratar no dia-a-dia com as chamadas classes inferiores?


-- Oh, isso é uma afronta à preservação dos costumes da nobreza que não me cansarei nunca de denunciar.  Estamos a passos largos caminhando para o caos, já não existe a privacidade dos castelos nem a pureza imaculada das classes ...  O mundo está entregue a legisladores plebeus, eleitos por seus iguais, que defendem – que ousadia! – os direitos humanos e a partilha das riquezas, dos sagrados bens de família com pés rapados que já nasceram pobres e nunca tiveram acesso à educação e jamais ouviram falar em “direitos herdados” transmitidos milenarmente de pais a filhos ...

-- E você não acha, minha erudita ratazana, com todo o respeito às suas herdadas convicções de posse e propriedade, que cada um deveria conquistar o seu espaço e bens pelo sacrifício da própria luta e do seu trabalho, sem nada receber de mão beijada?

-- Ora, quem está falando?!  Um rouxinol vagabundo que nada possui e que está trepado num galho de minha roseira sem pagar aluguel ... Chô!

-- Engana-se, minha nobre roedora de ilusões, esta roseira pertence a si mesma.  Quanto a mim, usufruo dos bens da natureza, desfruto da liberdade de voar e entoar minha canção e sou irmanado com todos os seres.  Eu amo você, apesar do mau cheiro, sem nenhum preconceito de espécie, raça ou família, cultivo a humildade de observar, ouvir e aprender com os outros e não me sinto inferior ou superior a ninguém.  Sou o que sou, um rouxinol.  E porque nada possuo, não tenho inimigos ou receios de algo perder; não dito normas de conduta nem preciso me prevenir ou guardar rancores, mas simplesmente voar, amar  e cantar.  

                      
    Luciano Machado
                                                                      

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